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Rui Lage (1975)

Rui Lage (1975)

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11.
O CORVO

Poderás ralhar nevermore
nos umbrais da poesia
cobiçar a capoeira
ao galo a cantar pelo menos
desde as cantigas de amigo:
de ti os vindouros sem penas
farão arroz de cabidela
ou quem sabe torpe gralha,
de corvo corruptela.

De ruínas farás sempre
uma torre habitada,
viela, balcão, taberna assombrada,
inútil protesto
de utilíssimo nada.

in Corvo, Quasi Edições, Outubro de 2008

10.
IP 2

Oito óbitos por quilómetro
é muito insecto esborrachado
no pára-brisas.

São muitas vidas.
É muita abelha, muita borboleta,
muito mosquito.

Mas tu não és menos chegado ao finito
e o mais certo é que andes distraído
de que há um vidro

entre ti e o horizonte.

in Estrada Nacional, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, agosto de 2016

9.
Nada fizeram por merecer-nos, os deuses.
Não se deram sequer ao trabalho
de nos salvar,
mas nasceram várias vezes
e morreram outras tantas
em muitas línguas e países,
ou circularam
da planta ao jardineiro
tudo ligando
em universal desarmonia. 

8.
Se pudesses, O’Neill, ver hoje o teu país,
(ou tu, Assis Pacheco, filho pródigo
destes quintais floridos
)
velho de oito séculos e pouco mais velho
desde que o deixaste,
país que secretamente não vota
para não se maçar
enquanto furta com arte as gaiolas vizinhas
a cantar nas paredes caiadas,
país com mais que fazer
(futebol para ver
e mato para queimar); 

7.
A rua é comoção antecipada,
Noutro lugar é a mesma ternura 

6.
Descamam as telhas sob o sol
punitivo, zunem fios de alta tensão, 

5.
O aguaceiro manso das jovens
passeia na sala tardia 

4.
Entopem o gargalo da toca
espetando o nariz, calcando 

3.
O olhar sobe as escadas da paisagem.
Muros atravessam-na duplamente
em amplos charcos de água. 

2.
AS COLCHAS RICAS FORMANDO TROFÉU

Intermináveis nos terraços
de onde se vê o céu mobilado,
ou debruçadas em varandas penitentes 

1.
A CARTA NA MÃO

ao meu pai, Carlos
País perdido no regaço da palha
sob o peso da luz e do pão,
tenho-te escrito e aberto nas mãos,
tenho-te perto da vista e longe
cada vez mais do coração. 

Rui Lage nasceu na cidade do Porto em 1975. Publicou os livros de poesia Antigo e Primeiro, Berçário, Revólver e Corvo. Traduziu Paul Auster (Poemas Escolhidos), Pablo Neruda (Crepusculário), e Samuel Beckett (Mal Visto Mal Dito), entre outros. Ensaísta e crítico literário, é ainda autor de teatro (Não há mais que nascer e morrer) e de literatura para a infância. Está representado em diversas antologias de poesia.

Fundou e dirigiu, entre 1998 e 2004, a revista de literatura, música e artes visuais Águas-Furtadas, editada pelo Jornal Universitário do Porto. Encontra-se a ultimar a sua tese de doutoramento em Literaturas Românicas (Perda, Luto e Desengano: a Elegia na Poesia Portuguesa do Século XX) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciou em Estudos Portugueses e Ingleses.

Sito in www.wook.pt

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