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Eugénio de Andrade (1923-2005)

Eugénio de Andrade (1923-2005)

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ÚLTIMO POEMA

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

in Rente ao dizer, Assírio & Alvim, fevereiro 2018, página 70

18.
O COMUM DA TERRA

Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia.

in 12 Poemas para Vasco Gonçalves, Porto, 1977

17.
CONSELHO

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

in Os amantes sem dinheiro, Quasi Edições, maio, 2008, página 66

16.
Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima. 

15.
Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde. 

14.
e uma luz de neve quebrada de vidraça em vidraça. 

13.
À sombra doutras tardes eu falava-lhe
das abelhas e dos cardos rente à terra. 

12.
Era um burgo pobre, sujo, reles até – mas gostaria
tanto de lhe pôr um diadema na cabeça. 

11.
as mães tecem o riso das crianças,
pelo balcão entornam os cabelos. 

10.
e por Antínoo e todo o amor da terra
juro que vi a luz tornar-se pedra. 

9.
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe 

8.
as crianças riscavam a cal com os seus gritos
cresciam para a morte com grandes olhos claros
ou ramos cegos. 

7.
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio. 

6.
É um suspiro a água –
ergue-se
como os lentíssimos lábios do amor
descem pelas espáduas. 

5.
Rua Duque de Palmela, 111: onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio. 

4.
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos: 

3.
Como um sol de polpa escura
Para levar à boca,
Eis as mãos: 

2.
Poucas vezes o outono se demorou
tanto nestas águas
sem as cobrir de névoa. 

1.
Há quem goste muito do Porto e há quem o deteste. Queria falar desta cidade «tão masculina» sem nenhum peso de erudição 

A cidade deve ter sido sensível a tal escolha, pois fê-lo cidadão honorário, concedendo-lhe por duas vezes a sua medalha de ouro. Eugénio de Andrade nasceu em Povoa de Atalaia (Fundão), a 19 de Janeiro de 1923. A família que lhe coube em sorte vai de camponeses abastados a mestres de obras, que, nos primeiros anos do século, nada tinham de parecido com os actuais – portanto gente que trabalhava a terra e a pedra. Mas será a mãe, com quem emigra aos sete anos, primeiro para Castelo Branco e um ano depois para Lisboa, a figura tutelar e poética da sua vida, como todo o leitor da sua poesia sabe. (A mãe, o falar materno, “o quente de uma vida infantil muito perto da natureza mais elementar”, virão a desempenhar um papel central na sua poesia). Em Lisboa vai viver e estudar, com um interregno de 43 a 46 em Coimbra, até finais dos anos 50. Em 1947, ingressa nos quadros dos Serviços Médico-Sociais, do Ministério da Saúde, onde desempenhará durante 35 anos a mesma função – a de inspector administrativo – por sempre se ter recusado a fazer concursos de promoção. A sua transferência para o Porto, por razões de serviço, deu-se em Dezembro de 1950.

Apesar do seu prestígio (Eugénio de Andrade é dos nossos raros escritores com repercussão internacional, com os seus 55 títulos traduzidos, e cuja obra, entre nós, tem conhecido sucessivas reedições), viveu sempre extremamente distanciado do que se chama vida social, literária ou mundana, avesso à comunicação social, arredado de encontros, colóquios, congressos, etc., e as suas raras aparições em público devem-se a «essa debilidade do coração, que é a amizade», devendo encarar do mesmo modo o facto de ser membro da Academia Mallarmé, de Paris. Cabe aqui referir que nunca concorreu aos prémios que lhe foram atribuídos, quer em Portugal ou na França, quer no Brasil ou na Jugoslávia, como nunca ninguém o viu usar qualquer insígnia das condecorações com que foi agraciado.

A obra de Eugénio de Andrade, escrita ao longo dos últimos 50 anos, tem início em 1942 com Adolescente, livro hoje renegado, tal como Pureza, de 45, dos quais fez mais tarde uma breve selecção que designou por Primeiros Poemas (77), é constituída, principalmente pelos seguintes títulos de poesia: As Mãos e os Frutos (48), Os Amantes sem Dinheiro (50), As Palavras Interditas (51), Ate Amanhã (56), Coração do Dia (58), Mar de Setembro (61), Ostinato Rigore (64), Obscuro Domínio (72), Véspera de Água (73), Escrita da terra (74), Limiar doa Pássaros (76), Memória Doutro Rio (78), Matéria Solar (80), O Outro Nome da Terra (88), Rente ao Dizer (92), Oficio da Paciência (94), O Sal da Língua (95), Pequeno Formato (97), Os Lugares do Lume (98), Os Sulcos da Sede (2001); de prosa: Os Afluentes do Silêncio (68), Rosto Precário (79), À Sombra da Memória (93); para crianças: História da Égua Branca (77), Aquela Nuvem e Outras (86). Traduziu principalmente Safo, Garcia Lorca e Cartas Portuguesas, tendo ainda organizado algumas antologias, quase todas sobre a terra Portuguesa, caracterizadas pela ausência de preconceitos e sectarismos literários, das quais se destacam: Daqui Houve Nome Portugal, Memórias de Alegria, Canção do Mais Alto Rio, Poesia – Terra da Minha Mãe, os últimos com a colaboração do fotógrafo Dario Gonçalves, A Cidade de Garrett, com desenhos de Fernando Lanhas, e Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Traduzido em cerca de 20 línguas, a poesia de Eugénio de Andrade tem sido estudada e comentada por, entre outros, Vitorino Nemésio, João Gaspar Simões, Óscar Lopes, António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Eduardo Prado Coelho, Arnaldo Saraiva, Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Pinto do Amaral, Luís Miguel Nava, Angel Crespo, Carlos V. Cattaneo, e suscitado o interesse de vários músicos, entre os quais Fernando Lopes-Graça, Jorge Peixinho, Filipe Pires, Clotilde Rosa, Mário Laginhas e Paulo Maria Rodrigues.

Viveu no Porto – de que foi cidadão honorário e onde foi criada uma Fundação com o seu nome – até a sua morte a 13 de Junho de 2005.

Sito in http://www.fundacaoeugenioandrade.pt/

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