Ao sentir esticão na linha, o pescador pensou em marmota; era maremoto.

In Elucidário oblíquo do reino dos bichos, pág. 41, Augusto Baptista

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Absurdo é ser aqui, talvez o único lugar no cosmos infinito onde a vida pulsa, que tão obstinadamente se atenta contra ela.

Publicado no blog azul-canário

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Emergências bentas

O 204 arranca, logo trava. Em desequilíbrio, a jovem de pé enlaça o passageiro do lado. Num novelo aos trambolhões, entre encontrões, caem no corredor do autocarro.
Ela ergue-se num pulo nervoso, balbucia:
– Desculpe, senhor.
A olhá-la debaixo, pasmado, doído, nele emergem nesse instante anos de catequese:
– De nada. Temos de ser uns para os outros.

Publicado no blog azul-canário

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Em casa da senhora

Em casa da senhora baronesa só entravam produtos de marca. De marca era a roupa, o calçado, os chapéus, as malas. Os cães. A água com que os criados de marca regavam as flores de marca.

Publicado no blog azul-canário

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Chuva, vento, frio. Saiu equipado para o mau tempo e para a pandemia: guarda-chuva, cachecol, sobretudo, bota alta, meia grossa, luvas, chapéu, óculos, viseira, máscara.

Regressado, fechou-se em casa. E respirou aliviado, livre enfim do confinamento da rua.

Publicado no blog azul-canário

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Vírgula

Sinal gráfico a indicar pausas. As pausas do bobi, ao longo do trajecto.

in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 50

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Orca em apartamento não é opção assisada. O tamanho das banheiras e a área das assoalhadas são factores traumáticos para cetáceo. Hipopótamo, quiçá rinoceronte, parecem escolhas mais sensatas. Entretanto, se tem a sorte de viver em moradia de tecto alto, deixe-se tentar pela meiga companhia de girafas: há exemplares com pêlo anti ácaro, laváveis, e os miúdos adoram-nas.

in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 34

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PEIXE-PAU não é carapau. Peixe-xuxo não é cachucho. Peixe mau não é pimpão. Frito com arroz de feijão.

in Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 53

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Diálogos rurais

CONHECERAM-SE, depois cada um seguiu o seu caminho: ele, a cidade; ela, a labuta dos campos. Férias na aldeia, inevitável cruzamento. Ele, falador, discorre sobre o passado, banalidades; ela, esbelta, corpo tisnado, no silêncio dos campos nas tardes de sol. De repente, ele detém-se, olho no decote da blusa. Ela dá fé do reparo, reflecte nos pássaros, na azáfama dos ninhos, nos insectos no afã da polinização, dispara:

– Qual é a tua vida para logo?

Publicado no blog azul-canário

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Os dias passava-os à mesa

OS DIAS passava-os à mesa. As noites também. Para ele, viver era comer. Naturalmente, inchou de engorduramento. A barriga cresceu-lhe, engoliu o peito, o pescoço, a cara. Os braços ficaram reduzidos a duas mãos sapudas. Para baixo, só barriga e pés.

A bem dizer, era enxúndias com boca. Um dia, exagerou. Entretido nas papas de sarrabulho, no cozido, sôfrego na feijoada com orelheira, rebentou. Compressão excessiva de gases com entupimento da válvula de segurança, segundo o relatório técnico dos bombeiros.

A deflagração ouviu-se longe. E de longe veio gente ver a cratera, os estragos: vidros partidos, telhados pelos ares, paredes sujas de papas, feijão, orelheira. Mas o pior ainda era o cheiro gordurento daquela devassa intestinal. Uma esterqueira. Um nojo. Uma vergonha, mesmo no centro escorregadio da vila.

Os familiares assumiram as culpas. Hipotecaram-se na limpeza, até ao último feijão. Gastaram fortunas. Desinfecções, garrafões de perfume francês, água de rosas. E, sempre, reincidente, um fedor em crescendo. Pivete assanhado de papas azedadas, que a mais leve réstia de sol desentranhava das pedras, inclemente. A alma do falecido? Logo, mais limpezas. Mais despesas.

Em consequência, houve que cortar à boca. Radicalmente. Semanas depois, os filhos, mirrados, finaram. Pele e osso, tísicos, mulher, netos, primos, tios, despediram-se. Todos. Mas não passaram pela vergonha de na vila se dizer que os do gordo eram porcos.

In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 70/71, Campo das Letras, publicado in  azul-canário

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Sombras

ERA um senhor sombrio de quem ninguém sabia o nome, a origem, o que fazia, que ao passar suscitava a dúvida se ia, vinha, de onde para onde, a fazer o quê, se era ele ou a sombra dele, vestida com a roupa dele, a andar com o andar dele, o chapéu dele, ou se essa sombra seria a sombra de uma outra sombra, de uma outra sombra, de uma outra sombra dele.

Publicado no blog azul-canário

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Colheita radical

O ESPADACHIM sacou do florete e disferiu o golpe letal no fruto que pendia da árvore. O último, o que restava na árvore genealógica: um soberbo arquiduque, luzidamente ataviado.

Publicado no blog azul-canário

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AQUELA história fazia-a chorar: tinha a letra muito miudinha.

in Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 63, Campo das Letras e Publicado no blog azul-canário

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Tempo de música

ENTROU no salão de festas com um barrete de campino na cabeça, fez peito, gritou: Eh, toiro! Besta brava!
O Américo das Argolas, recém-divorciado, deu conta do cite e, do fundo, investiu.
A pega consumou-se no exacto instante em que a instalação sonora arranca com um paso doble. E dá-se início à dança.

Publicado no blog azul-canário

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Enxertias

UM sucesso, a crer nos dicionários, os cruzamentos vegetais com bicharada: erva-gato, árvore-vaca, hortelã-boi, formiga-mandioca, cacau-jacaré, árvore-dos-mosquitos, flor-de-pavão, erva-passarinha, pau-de-tucano, abelha-flor, abóbora-menina, flor-dos-macaquinhos-dependurados…

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 16

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O boxeur

EXÍMIO no jogo de pés, extrema flexibilidade de tronco, raro domínio de punhos: um campeão!

Ligeiro problema é só a articulação das partes, a harmonia particular-geral, a passagem do jogo de pés para o jogo de mãos, cintura, postura de ombros. Enfim,  detalhes. Tal qual a finta de olhos, a arte da esquiva e de ataque, a escolha exacta do golpe a disferir, de supetão, como naja letal, ao relanti.

Entre este arsenal de possibilidades, como não hesitar? E aí, recorrente é a murraça dos antagonistas no meio dos olhos, logo no primeiro assalto, deitando tudo a perder quando tudo parecia bem encaminhado.

Publicado no blog azul-canário

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Nem tudo lembra

OS jornais avisaram: seria a manhã mais fria do século. Cauteloso, enroupou-se como nunca: pijama, camisolas, casacão, sobretudo, cachecol, calça grossa, luvas, gorro. Saiu, bateu a porta.

Mal pisa a estrada, um fogo gelado na sola dos pés lembra-lhe o esquecimento. A chave? Sem recuo, decide correr assim até ao emprego.

No percurso dolorido cruza-se com um vulto apardaçado. A bater o dente, diz bom dia. Em resposta, um grunhido, logo vidrado, logo caído, logo partido em estilhaços no chão gelado. Ele aos saltinhos, com medo de se ferir nos pés descalços.

Publicado no blog azul-canário

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Tempos modernos

ENCONTRO de rua, troca de olhares, curtas palavras, não tarda são um par na penumbra do quarto de hotel.
Do vulto sentado no sofá a um canto, a voz:
– Despe-te!
Cumprida a nudez, a voz:
– Vira-te de lado!
Virou-se de lado.
– Do outro!
Virou-se do outro.
– De trás!
Virou-se de trás.
– De frente!
Virou-se de frente.
– Veste-te!
Em silêncio, levantou-se, saiu. Agradara-lhe a obediência, mas o corpo não era o seu género.

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Conselhos a um octogenário deprimido

NA medida do possível, procure espairecer, arejar. Não se feche. Devagarinho, contemplativo, deambule, ande. Faça exercício. Passe os olhos pelas ancas das passantes em passeios demorados, desça e suba devagar os bustos intumescidos das teenagers (tenha cuidado para não escorregar) e espraie-se nos ventres descobertos das senhoras de meia-idade, a exibirem atrevidas tatuagens: bando de passarinhos a debicar-lhes o umbigo. Ou mais abaixo. Depois descanse, para não forçar o coração.

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Imaginário

OBSERVA as escadas rolantes em movimento incessante: dois troços, um para cima, outro para baixo. Imagina o troço ascendente a subir até um topo inalcançável. A inflectir para baixo, congemina o outro troço a mergulhar em trevas infinitas.
E intriga-se como a nenhum estudioso, pensador, religioso, a ninguém tivesse surgido a ideia de recorrer a escadas rolantes no trânsito transcendental. Por razões utilitárias, na ligação entre o céu e o inferno, ou simplesmente para passear, queimar tempo, que no além o há abundante, perpétuo.
Falta de lembrança.

in Lacrima, edição gatopardo, outubro 2019, página 87

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O extractor de raízes

MATEMÁTICO compulsivo, viciou-se na extracção das raízes quadradas. Quando não havia mais destas raízes para extrair, dedicou-se à extracção das raízes dentárias: as suas, as outras fugiam.

Esgotadas as raízes dentárias, fixou-se na extracção das raízes capilares: zonas púbicas, sovacos, enfim atacou na cabeça a raiz dos cabelos.

Rendido à calvície, virou-se para as raízes familiares. Extraídas as mais chegadas, anda agora à volta de uns primos afastados que descobriu no Brasil.

Antevendo o fim do filão, cismático, perscruta as plantas dos pés.

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Quatro histórias para um pé

A ponte estava presa por um fio. Ele meteu o pé, o fio partiu-se.

Tanta crueza, escreveu outra história:

A ponte estava presa por um fio. Ele meteu o pé, o fio partiu-se.
Por sorte havia outro.
Pé?
Fio.

Desfecho piegas, escreveu outra história:

A ponte estava presa por um fio. Ele meteu o pé, o fio partiu-se.Por sorte havia outro.
Pé?
Fio.
Que também se partiu.

Crueza a dobrar, escreveu outra história:

A ponte estava presa por um fio. Ele meteu o pé, o fio partiu-se.
Por sorte havia outro.
Pé?
Fio.
Que também se partiu.
A tempo de ele tirar o pé.

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A bola que pincha

ENTRAM os três em cena: a mão, o cão, a bola. A bola na boca do cão.
O cão solta a bola, que a mão agarra, lança. Arco largo, a bola beija o chão, pincha, e, no ar, o cão abocanha. Regressa, passo lesto. A bola na boca do cão.
O cão solta a bola, que a mão agarra, lança.  Arco largo, a bola beija o chão, pincha, e, no ar, o cão abocanha. Regressa, passo lesto. A bola na boca do cão.
O cão solta a bola, que a mão agarra, lança.  Arco largo, a bola beija o chão, pincha, e, no ar, o cão…
Adiantada manhã, saem os três de cena: a mão, o cão, a bola. A bola na boca do cão.

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A força do tem de ser

TODAS as manhãs – a pretexto de alindar a campa – ela ia ao cemitério conversar com ele, em segredo.

Quem por ali andasse, incapaz de alcançar além das evidências, vendo-a sozinha a falar, prognosticaria loucura.

Internaram-na.

À socapa, passou ele a ir visitá-la ao hospício. Mas, reflectindo a dois, demorada discussão do caso, assim não dava: as despesas, as viagens, o perigo de serem apanhados. O perigo de serem apanhados! E decidiram assumir a relação.

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A mulher que não alcançava

QUERIA ver-se multiplicado, mas, apesar do empenho no exercício da sua quota-parte nesta empresa, a mulher não alcançava.

A situação entristecia-o.

Sempre que podia, tentava, insistia de todos os jeitos, procurando que ela alcançasse. Diversificava as abordagens, ensaiava estratégias, novas tácticas, posições, gastava fortunas em livros e revistas para ela ver, se motivar. Sem se enervar, como convém nos casos de namoro e concepção, praticava modos delicados de objectivar os seus propósitos.

Lançada a semente, deixava depois levedar, dava tempo ao tempo. Expectativa em alta, por fim a cena de sempre: a mulher não alcançava!

O arrastar do caso desgastou a relação do casal, com recriminações recíprocas, zangas que só serviam para tornar ainda mais fundo o desencontro, mais longínquo o objectivo.

Anos de impasse e tensa relação, casamento por um fio, acabou por perder a esperança e, entristecido, desistiu do teimoso intento de ver a mulher alcançar ser fã do seu clube de futebol.

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O escriba pudibundo

MESMO quando muito irritado, nos seus escritos não deixava transparecer o azedume. Exprimia a raiva com educada contenção. Em situações de explosiva indignação excedia-se quando muito com um f., um c., às vezes sublinhados com um ponto de exclamação. Não ia além desta contida enunciação.

Também raramente recorria ao m., ao p., mesmo ao pqp ou ao clássico fdp, em combinação com mais ou menos pontos de exclamação.

Um dia, talvez cansado de tanto polimento, pudicícia, por um motivo irrelevante foi-se às consoantes e desvendou-lhes o corpo em toda a sua intimidade.

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Uma questão de erre

– MÃOS ao ar!
Pouco dado a obediências, o cowboy ignorou a ordem, deu o peito às balas:
– Dispara, dispara, se és homem!
O pistoleiro ainda advertiu:
– Olha que eu atiro.
– Atira, cobardolas!
– Olha que…
– Atira!
– Poc!
O cowboy acolheu o disparo no peito, enrolou com espalhafato sobre si próprio, rebolou no chão da padaria. E ficou-se, braços abertos, mortíssimo.

Mais tarde, Luisinho a ler a prosa, indignado:
– Custava-te muito pôr um erre, custava, papá?! Sacrificavas os factos, mas acrescentavas emoção. Caramba, a história era logo outra, eu a enrolar no chão da pradaria.

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Sorte grande

COMPROU um bilhete da lotaria e uma garrafa de champanhe. Chegado a casa, garrafa no frigorífico.
Logo após a extracção, eufórico, mas ainda  um tanto anestesiado, abriu a garrafa, para comemorar. Para comemorar ter-se visto livre do dente.
Tivesse ele a mesma sorte ao jogo.

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O velho e a morte

CONHECIAM-SE de vista desde há anos: bom dia, boa tarde, cada um ia à sua vida.
Com o correr do tempo e as voltas da vida, acabaram por se aproximar, estreitar relações. Um destes dias,  ele olhou-a nos olhos, perguntou: podemos tratar-nos por tu?

Publicado no blog azul-canário

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O futuro já

DESDE que soube pela televisão ter o Sistema Solar os dias contados, anda cismático. Preocupado com a vida. A sua, a de todos. O tempo passa a voar: 15 mil milhões de anos é já amanhã.

Publicado no blog azul-canário

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O homem que cortava a direito

OS amigos recordam-no, saudosos, como um homem recto, cidadão que, face a contrariedades, não perdoava: se os calos o magoavam, vik!; se lhe doíam os dentes, vuk! A última vez que foi visto queixara-se de uma leve dor de cabeça.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 29.

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Surucucu

SORVIA um sumo açucarado quando sucedeu um sussurro associado a um sopro assolapado. Assustado com o assunto que lhe desassossegou a sorna, o idoso senhor Sousa surpreendeu no soalho uma sombra sulfúrea a submergir sorrateira no sopé do sofá. Decerto sonhara. E sorriu assombrado com a suposição de assurgir assim uma serpente a sério, sinusa, suave, a sobressaltar-lhe subitamente a solidão.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 44

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O homem que escalou as nuvens

TREPOU montanhas, trilhou cordilheiras, subiu montes, montou picos. Pisou toda a Terra em cota alta. Vencido o repto derradeiro, olhou o céu. E percebeu nas nuvens, corpos fugidios, vaporosos, uma mofa libertária rente ao Sol, a sombra a enterrá-lo no chão da cumeada.

Traquejado no desempenho das alturas, deu-se ao estudo do novo desafio. Agachado, para não desconfiarem, aprendeu nomes, anotou rotas, analisou hábitos e costumes, desenhou volumes, traçou planos para assaltar as aéreas e indómitas naturezas transumantes.

Chegada a hora, ascendeu a um cabeço apropriado. Manhãzinha, entre fiapos nebulosos, surpreendeu –iluminados – lãzudos dorsos a levitarem distraídos no baixio. Farejou os ventos, escolheu a presa, saltou-lhe ao manso corpanzil. Interminável, a ascensão foi depois, em colo fofo, brincadeira de menino.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 5.

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Reflexo voraz

NO balanço de água mansa que lhe banha os pés, vê a sua imagem adolescente ondear, quieto reflexo transparente à tona. Um fio líquido distende um pormenor, de supetão logo outro, e o resto se revolve no redemoinho, num instante. Na elástica tensão e distensão da superfície, o reflexo rola desconexo, tropeça nos cotovelos pedregosos junto à margem, rasga-se nas arestas aceradas dos roquedos, balbucia, imerge no tumulto da curva de águas derrapantes.

Insondáveis liames retrocedem ao lume de água, no lapso de um chicoteio, outros se insinuam no ânimo líquido, traiçoeiros buscam os pés adormecidos no remanso, e os alcançam, e os enlaçam no ímpeto da corrente.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 97.

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O FOGUETE rebenta, nas nuvens. Em curvas largas e volteios indecisos, a cana circunda a romaria. De repente, embica para baixo, veloz, determinada. E crava-se, letal, mesmo no alto da careca do presidente da comissão de festas. Para o ano que vem, o fogueteiro tem debaixo de olho o presidente da junta.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 85.

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Afectos descartáveis

APARECEU-ME um dia destes à borda do passeio, mesmo em frente ao Hospital Militar do Porto. Lindas rodas brancas, pedais cromados, assento largo como dorso de pónei, e um volante-guiador — auréola negra por cima do manípulo das mudanças: um triciclo! Um triciclo como eu nunca tive, no lixo!

Parei a remirar a peça, desejo de pedalar a corroer-me. E conjecturei sobre o que terá levado alguém a atirar ao lixo um brinquedo assim. Será que os pais… Será que os pais já lhe terão dado o carro?

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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Cavalgada

A TARDE escalda. Silenciosa, a matilha abandona o mercado e galga sem pressa a ladeira. São uns nove, talvez mais, entre homens e mulheres. Elas: saia sobre o comprido, casacão, lenço na cara; eles: grossa samarra, bota de atanado, gorro de lã.

Gente estranha.

Alcançado o cocuruto, sentam-se na escadaria. Dali perscrutam os automóveis, o casario e, longe, negros, os montes que os incêndios consumiram. Avaliam o lugar, cochicham. Um ensaia pedir esmola a um sujeito, de passagem. Outro, curioso, vai espreitar as estreitas e fundas aberturas, os sulcos, que rasgam a rua em duas longas paralelas.

Não tarda, agachados, todos espiam a profundidade, a alma da frincha. O mais engenhoso esgrime um arame comprido, ponta em gancheta. E partem animados no garimpo, rua abaixo.

Empresa a meio, travam de repente. Entreolham-se numa hesitação fugaz e, como meninos, estridentes gargalhadas, vão todos a correr montar um cavalinho de pau, abandonado.

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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O cachecol

QUANDO ele chega àquele lugar, uma vaga impressão lhe diz já algum dia por ali ter passado. Descobre breves sinais, um hálito a lembrar-lhe espaço antigo e seu.

Geografia indecisa entre o litoral e o íntimo dos montes, em redor não se ouvem gaivotas, jamais por ali – inquire – se esgueiraram os passos leves dos lobos. Improvável lugar.

Vendo bem, outros bichos são presença rara nas ruas. E as pessoas circulam, quase sempre de carro, por estradas decrépitas. De casa ao emprego, ao mercado, ao café, tudo perto, raramente o fazem a pé.

Estrangulam a entrada do cemitério com trânsito, buzinas. Como se o tempo tivesse ali importância.

No jardim, árvores decapitadas, cicatrizes extensas. Noutras paragens, mutilações e vegetais extermínios anunciam infeliz a gente daquele lugar. Por tal haver consentido.

Da pastelaria frente ao jardim, uma mulher se esvai na manhã.

Cinge a carteira, enrola o cachecol ao pescoço, uma vez, outra vez, outra vez, frenesim a raiar um desespero vermelho, a cor do casaco. Ansioso, ele decide inquirir:

– Desculpe, a senhora vai… vai suicidar-se nesta manhã regelada?

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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O cavalheiro

AO sair da camioneta, na atrapalhação dos degraus da porta traseira, que de tão íngremes mais parecem escadório de navio de carga, a senhora desequilibra-se, cai no asfalto. Um socorro de mãos não tarda a pô-la ao alto, a sacudir-lhe com desvelo a poeira do casaco, a entregar-lhe a inchada carteira preta, que, no reboliço, rolara para a berma.

Desvanecida com tanto cavalheirismo, mãos acordadas para acolherem a preciosa devolução, a senhora fecha os olhos. No escuro, esconde o embaraço, repete palavras agradecidas. E enquanto assegura estar bem, não se haver magoado, congemina penitências por ter avaliado mal a Humanidade, estes tempos de selvagem egoísmo e barbárie, como antes costumava acusar.

No interim, mãos suspensas no gesto receptor, os dedos sulcam o vazio, nada alcançam. Estremece num pasmo repentino, olhos vidrados. Já o cavalheiro, três saltos felinos, dobra a esquina.

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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Uma história exemplar

ERA uma vez um casal de piolhos que conseguiu instalar-se numa bonita cabeleira. Com o tempo a trupe cresceu, conquistou outras cabeças. E não tardou a assumir o poder.

Ninguém mais se coçou.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 75.

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Central

VERÃO, Inverno, noite ou dia clareado, já elas andam a debicar o chão, entre os pés dos passageiros. A coxear, asa ferida, surpreendem migalhas, minúsculos nadas. Outros deserdados por aqui vagueiam. Alguns pedem esmola, alguns desistiram.

É sempre assim a esta hora, aos sábados, na central de camionagem da cidade grande.

Arribam prostitutas, homens embriagados, gente com embrulhos, malas, filhos. Pressa. Chegam mal dormidos, cansados uns dos outros, com a fixa ideia de partir. Pouco falam. Sussurram, dizem com os olhos, gestos, num quase silêncio.

Punhal a rasgar os ouvidos, inesperado sobressalto, a instalação sonora golpeia no momento do costume: “Linha 1, passageiros para Fátima, Lisboa, e com destino a Beja, Évora, Faro…”. Muitos irão dali para mais longe, remotas paragens, lugares perdidos no mundo. E o autocarro, alvo, cromados a brilhar, resfolga numa destemperança de fumaça venenosa, persistente, esventrado por bagagens, passageiros a correr.

Também ele e esta história breve partirão para Sul, camioneta em ruínas, destino divergente: umas poucas dezenas de quilómetros adiante. Quanta incomodidade, quanto tempo a penar ainda, em ilusório tempo de automóvel para todos.

Destino já ali ou a perder de vista, não tarda a debandada. Na central ficam as pombas. As pombas e os miseráveis. Só eles habitam este chão de passagem.

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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Os bravos

INOPINADO, o espaço sobressalta-se com um grito. Um uivo sem fim, estridente, cortante. De lés a lés a terra estremece, se cala. Sob a desgraça que paira no ar.

Nas ruas irrompem homens aflitos, em resposta à chamada raivosa. Percebe-se, nas respirações, no olhar, vontade de acudir. Um, outro, outro, correm, convocados pelo clamor.

A sirena!

Não tarda, labareda a varrer a estrada, dobra a esquina a velha carreta vermelha, sineta a retinir num desassossego metálico. Vai cavalgada por uma quantas figuras em pé, esquissos toscos, enroupando fardas, braços com botas, capacetes de cobre no ar. Às rédeas do cavalo de fogo, mãos incendiadas, desgrenhado, olhos a furar o vidro da frente, naquela vertigem um miúdo, cosido à parede, pressente ir o pai.

E fica inquieto.

Logo a voar carros-tanque, ambulâncias, passam na mesma voragem. Passam jipes, outros carros, como um temporal.

A terra fica gelada, a vê-los passar. Ao volante: o Rodrigo, o Torres, o Moreno, o Afonso, o Mendonça, o…

Publicado originalmente in Histórias de PassagemRepórter

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A função e o órgão

A FUNÇÃO faz o órgão, modela o indivíduo: disso a vida nos dá inúmeros testemunhos. Destaque nos jornais teve o caso do serralheiro-mecânico londrino, braço direito transformado em chave inglesa. Absurda ocorrência foi a cabeça do pedreiro alemão, muito cerebral na obra, concretizar-se em vulgar tijolo-burro. Patética é a história do cirurgião-cardíaco, que, paulatinamente adelgaçado com o refinamento do corte, um dia se revelou bisturi.

Mas há exemplos mais inquietantes.

Todos recordarão o matemático argelino tornado algarismo. E como não citar, acontecimento que traz ufanos os confrades de Língua, o escritor brasileiro modelado em vocábulo? Mas, o mais intrigante, permanece o caso dos músicos austríacos – ela, soprano; ele, contrabaixista – progenitores de uma numerosíssima prole de notas musicais.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 47.

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Arte e manha

QUANDO a desoras passou no teatro, a corista saía em passo miúdo, saia travada. E fez-lhe um sinal. Seguiu-a, sem uma palavra, sulcou a cidade, até ao limite. No outro lado do rio, esperava-os a talha baça de um altar, penumbrado pelo bafo de círios e álcool, entre anjos, santos, crucifixos, caruncho. E um padre rançoso. Sim é tudo quanto se lembra ter dito, por isso vagamente lhe ser perguntado.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 134.

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Os primeiros passos

DE tempo, só precisava de tempo (e de remover um pequeno obstáculo) para vencer na escrita. Pela manhã, fez a mala: várias mudas de roupa, resmas de papel, dúzias de lápis. E foi entregar-se à polícia, não sem antes ter passado pela casa do editor.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 90.

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O homem que arrombou a livraria

O ASSALTO à livraria consumou-se com o roubo de um livro, de um só livro, acontecimento tão insólito que o país se intrigou deveras. Os jornais, as rádios e as televisões não falavam de outra coisa. Para desvendar o mistério foi destacado um polícia muito arguto, que recolheu provas, fez as análises do costume e tudo o mais que estas coisas reclamam. E quando o caso parecia sem saída, o perito formulou a pergunta essencial: a quem aproveitaria tal crime, que bolsos inchariam com tanto falatório? Bom de ver: o autor do dito livro, logo preso! Um barbudo cadastrado, pinga-amores e desordeiro, um tal de Luís Vaz.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 23.

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ANA acorda. Abre um livro à toa, lê:
E, no livro: “Ana acorda. Abre um livro à toa, lê: ”
– Estranho, pareço eu – balbucia Ana.
E, de novo no livro, como num jogo de espelhos: “– Estranho, pareço eu – balbucia Ana.”
A Ana do livro era ela, estava certa agora. Intrigada, corre ao fim da história…
“A Ana do livro era ela, estava certa agora. Intrigada, corre ao fim da história… Inesperado, com um leve ranger de porta, André, enfim de volta da Amazónia! Entra, na mão um grande ramo de rosas bravas, como ela gostava. – André, que surpresa! – grita Ana, retrato de felicidade.”
– André que surpresa! – grita Ana, retrato de felicidade.
“André sopra a zarabatana, dissimulada entre as rosas. A seta de curare letal entra fundo na garganta da namorada, como uma zaragatoa. Ah!”
– Ah!

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 12.

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Nome nenhum

OLHOU a parede no cotovelo do prédio, por um quase acaso. Conhecia bem a pequena cidade, jamais precisara saber o nome das ruas. Lançado o olhar, perdeu-se. E teimou na busca de uma placa, inscrição, referência, nomeação do lugar.

Neste entretém, deu em discorrer na ordem obtusa que nos impõe mensagens ao nível dos olhos, quando se não quer; nos obriga a catar alturas, quando se procura.

Partiu sem destino, sem rota, por avenidas, vielas. Farejou cotas altas, em muros, frontarias. Não reconheceu um nome, alguém da sua juventude, por ali pendurado. Como se uma vontade quisesse apagar da memória esse calendário, essa urgência de luta e cultura.

Talvez um quelho, esquina, umas escadas redondas, talvez um beco acolhesse a luz de um nome familiar, cúmplice. Ensaiou perguntar. Mas por ali quem passava, visivelmente, tinha mais que fazer.

Publicado originalmente in Histórias de Passagem, Repórter

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O sem-abrigo

O CASAMENTO, o bem-estar, o espaço, tudo sacrificou por amor aos livros. Vivia para eles – mancha crescente a acastelar-se nas paredes da casa, a atapetar o soalho e a engordar em montículos, logo conglomerado denso, cada vez mais grosso, avidamente a consumir o quarto, corredor, cozinha…

E veio um tempo em que só de pé podia dormir, após rastejos entre galerias de papel, lombadas, letras, vocábulos. E sempre novas edições, prémios Nobel, jogos florais, suplementos literários, colecções, irrecusáveis desafios à pulsão bibliófila. Breve, impedido de ler, entrava em casa de pé-de-cabra, assalto árduo, corpo na disputa milimétrica entre obras empilhadas, monolítico ocupante.

Ontem forçou a porta, delongadamente. Pelo minguada fresta alcançada, logrou introduzir uma derradeira obra: delgado impresso de folha única, papel bíblia. E, expulso de casa pelo amor aos livros – objectos cruéis, o livros -, partiu em demanda de uma outra paixão, num sítio qualquer.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 66.

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 Zurros

DE REPENTE, surdiu um vento suão que ensandeceu os bichos. E as galinhas começaram aos coaxos. Sobressaltados, os cães desalmaram-se em relinchos, os porcos em ão aõs desesperados, rãs aos cacarejos, cavalos a grunhir.— Está tudo doido! — disse de si para si o lavrador.

Tanto bastou para que o vento amainasse, a ordem se restabelecesse: cacarejantes as galinhas, os cavalos aos relinchos, os cães a ladrar, os patos a grasnar, os porcos a grunhir, as rãs aos coaxos.

Enorme banzé!

Incomodado, o lavrador foi-se sem dizer palavra, a mastigar chilreios, misto de rugidos e grugulejos, espécie de uns zurros.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 50.

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O homem que é um viajante compulsivo

À SAÍDA do aeroporto, inquire qual o melhor caminho para visitar a torre Eiffel. O taxista, tomando o interlocutor por imbecil, condescende em explicar que isso é na Europa, Paris, ali Brasil, a cidade de S. Paulo. Sem se mostrar agastado com a contrariedade, o passageiro demanda um novo voo, directamente a Moscovo. Para aí visitar as pirâmides de Gizé.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 51.

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LEVOU a carabina à cara. Apontou. Premiu o gatilho, uma, outra vez. Dois tiros secos. Sorriu. Com o estrondo característico, o mosquito esborrachou-se na alcatifa.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 38.

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O país de Alice

NUM estranho acidente, as mãos da menina Alice ficaram presas na porta do autocarro 35. Avaliadas as hipóteses de desencarceramento, os técnicos concluíram: melhor seria não arriscar. Posta ao corrente, concordou, tanto mais que lhe garantiam o mesmo ordenado do escritório, descontos para a Segurança Social, subsídio de refeição, pernoitas. E, ademais, sempre que quisesse, a família podia vê-la. A partir daí, dia e noite, a menina Alice e o 35 passaram a viver juntos: um casal, a bem dizer. A ocorrência tornou-se notícia, com cobertura mundial de televisões, rádios, jornais. A sorte grande para a menina Alice, que parecia condenada a passar a vida a teclar ofícios, mãos presas à velha Remington.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 16.

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WC

HOUVE  um tempo na cidade em que o 52 parava na Praça junto a umas árvores, galhos negros a regurgitarem à noitinha de frutos chilreantes: o alarido da pardalada antes de adormecer. A céu aberto, nos ramos sobranceiros, o WC.

Na paragem do autocarro, pandemónio. Entre os alvejados, o alívio dos pterossáurios estarem consabidamente extintos.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 50.

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O homem que quis ser lobo

DEMANDOU as serranias a balir. Logo um lobo acolheu o chamado e o engoliu. Afeito à nova pele, saltou para o meio da alcateia. Decidido a discutir a liderança.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 44.

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ERA um tipo terrivelmente supersticioso. Perdia a cabeça só de pensar certas coisas.

Teve uma infância feliz, cresceu sem traumas. Mas, adulto, começou a dar-lhe aquilo. Recorreu a psiquiatras, psicanalistas. Fez terapia regressiva, exorcismos, acupunctura. Meteu-se ou meteram-no, nos chás e beberagens, astrólogos, macumba, candomblé, djambi, videntes e nos bruxedos mais clássicos.

Em vão! Até ao fim da vida, persistiu naqueles pavores supersticiosos, fechado em negativas epilépticas, transido de medos parvos. E, em sexta-feira 13, nunca foi capaz — entre outras recusas piegas — de meter a cabeça debaixo da pata do elefante ou, pasme-se!, de dar um beijo, um simples beijinho, na boca do tubarão.

O caso só não teve consequências laborais porque o dono do circo era irmão do domador.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 56.

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Dúvidas

INTOLERANTE, avalia-me. O queixo. A boca. O nariz. Os olhos. O rímel das pestanas. A curva da sobrancelha fina. A testa. Este cabelo. Porventura caracóis? Talvez pintá-lo. Verde? Amarelo? Tons de púrpura? Azul? Olhos de prata, grandes, olha-me sem coração. Mudo. Cruel, o espelho! Na silenciosa sugestão, talvez, me deixe ficar nesta destemperança natural: cabelo todo branco, enfim.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 14.

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Pintarroxo

PINCEL no pigmento, picuinhas, o pintor pinta o pitoresco pinheiral: o pirómano aos pinotes a pirar-se ao pingalim, piedade!, as pirraças dos pimpolhos em pijama no piquenique, os piropos piegas do pisa-mansinho à pitosga pitonisa, o pica-peixe na pilhagem piscícola, o pica-pau a picar o pinheiro (pintassilgo na pista do pinhão), a pirueta do pisco, o pianíssimo pio pio do pintarroxo, o pi

Fulminante uma bola! Uma bola na tela e na pia harmonia! Para gáudio da mulher do pintor, desesperada com mais um fim-de-semana no campo a olhar passarinhos. De calção paquidermes a jogar futebol.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 38.

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O homem que preserva velhos hábitos

APÓS os funerais tem por costume chegar a casa e logo se livrar da gravata preta, que dependura no armário; do fato, guardado no gavetão; dos sapatos, recolhidos por debaixo da cama. Só depois de meticulosamente limpo, no estojo de veludo preto, recata o revólver.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 37.

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A fotografia

DEU a volta à vida quando conseguiu a imagem, episódio que se conta em poucas linhas. Logo que soube da visita de Sua Excelência, comprou fato, gravata, esmerou na aparência e, numa afoiteza, insinuando-se entre os convivas, alcançou que um bate-chapas disparasse justo quando – vencido o cerco – desenhou aéreo enlace, Sua Excelência, leve sorriso em si não raro, a corresponder. Abraço familiar, para quem visse. Depois, investiu no facto: mudou-se para a cidade, casa nova, tudo em grande. À medida da ampliação que mandou fazer do instantâneo, a revestir a parede do escritório em que recebe clientes, toda a gente enfim que carece da sua influência, intimidade com Sua Excelência.

Publicado originalmente in A minha laranjeira e outros contos, Edições Gatopardo, abril 2013, página 10.

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VIDA madrasta! Ele, fisicamente parecidíssimo com o patrão, na empresa não passava de um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.

Resolveu vingar-se da má sorte. Gizou plano. E, por um dia, fez-se passar pelo outro. Resultou: senhor doutor para cima, senhor doutor para baixo, reuniões, salamaleques, secretárias a sacudir-lhe a caspa do casaco.

Um dia em cheio! Praticamente só ensombrado por um pequeno pormenor: “Imperdoável ele ter faltado sem justificação, senhor doutor!” – justiçava o chefe de pessoal.

Ainda tentou relativizar o caso, dar uma nova oportunidade ao homem. “Seria um grave precedente! Há normas!” – inflexível, o burocrata.

Não havia volta a dar-lhe. E teve mesmo de despedir o faltoso. Um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 97.

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Pilifobia

NASCEU-LHE um no braço e logo desatinou: tinha asco a pêlo! Repugnavam-lhe barbas, bigodes, tranças, cabeleiras, penugens, toda a ocorrência piliforme, em suma. Com um hábil e demorado acompanhamento familiar foi possível relativizar o incidente, vencer o trauma. E ganhou estofo para depreciar os cabelos que lhe haveriam de nascer na palma da mão, as madeixas peludas a crescerem-lhe na planta dos pés, os fartos entrançados a soltarem-se do palato, a poupa ondulada a emergir-lhe da língua, os densos caracóis a saírem-lhe dos olhos… A cada achaque, sábia, a mãe aquietava: Há gente, filha, há gente a quem pêlo nasce até no coração…

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 117.

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Novas parábolas

ERA uma vez uma floresta de muitas árvores, cruzando ramagens, raízes, canto de pássaros. Houve um tempo de fogo. E a floresta se fez deserto de troncos mirrados, em pé. Logo um tempo de ventos, um tronco caiu. Caindo, tombou outro tronco, este tombou mais um outro, estoutro arrastou muitos mais.

Era uma vez um canto de pássaros.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 32.

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O homem que comprou uma esferográfica

COMPROU uma útil esferográfica, modelo capaz de fazer a tradução dos seus escritos, na hora exacta em que os produz. Basta regular a língua pretendida, entre noventa e cinco opções, manuscrever a pensar em Português, por exemplo, e o instrumento faz o resto.

Terminada a tinta, claro, as capacidades do objecto definham, universo da tradução estritamente confinado às línguas mortas.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 22.

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A mulher iluminada

ENTRO no metro e logo me perco na mulher, excêntrica aristocrata ávida de aventura, certamente. Outros passageiros vão embalados na mesma volúpia, entretidos, no mesmo jogo de olhares. Vestido negro, tecido caro, a todos ela corresponde. Dálmata aos pés, um longo lenço, jorro azul-mar, lhe cai dos ombros sobre as mãos, os joelhos nus, a pele clara. Fim de linha, eu esquecido do destino que levava, fixamente a olhá-la, fixamente a olhar-me, se levanta. Onda, luz, incendiada, sai. Por perto o cão a guiar-lhe os passos.

Publicado originalmente in A minha laranjeira e outros contos, Edições Gatopardo, abril 2013, página 10.

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ACORDOU de má catadura: – Ó mulher, deixa-me a cabeça em paz! Cata o rapaz!

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 65.

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O sonho de Sua Excelência

SOMOU posses, títulos, honrarias, cargos: Desembargador, Deputado, Professor, Investigador, Ensaísta, Administrador, Diplomata, Comendador, Presidente. Insaciável, Sua Excelência anseia a qualificação absoluta, a suprema nomeação da infância: toninho.

Publicado originalmente in O caçador de luas, Edições Gatopardo, outubro 2003, página 13.

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Lesma

A BATIDA cadenciada do tacão, o olhar, o perfume: elucidação sensitiva sobre a feminina silhueta que ilumina o passeio, a rua, a manhã. A cruzar o radioso rumo, peganhosa, negra, uma lesma. Toneladas por milímetro quadrado, o tacão intercepta o vil atrevimento.

Pof!

Na extrema singeleza. o acto exprime a diferença de estatuto animal entre a calcadora e a calcada ou, genericamente, o papel dominante da Humanidade face às humildes criaturas. Emaranhados juízos o caso poderia ainda suscitar, fértil universo abstracto consumado na concreta e oleosa síntese de babas, ranhetas, gorduras, ordinários mucos espremidos na decisão derrapante dum sapato.

Pof!

Custa vê-la, na colossal potenciação do passo determinado, espalmada contra o muro de granito, massa de serosidades e matérias, a esvair-se. Rente à amálgama espapaçada em que se constitui, visão desfocada, consegue entrever uma ridícula, nojenta, parda presença, que, parada, vai andando.

O arrastado ir, diante do seu perene imobilismo agora, provoca-lhe um tal enervamento que se alevanta e, toneladas por milímetro, com o t

Um aroma de perfume caro desfalece na manhã.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 26.

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O homem que caminhava na lezíria

A ÁRVORE que dormia na semente acordou de supetão. E irrompeu em raízes, tronco, ramagens, flores, frutos. Benefício tão eloquente, surgido no descampado ressequido, atraiu o viajante de passagem, que ali se acolheu no desfrute da sombra inesperada.

Longe um vulto avantajado detectou a intrusão e aproximou-se em corrida desabrida, ânsia vigorosa de rápido conhecer quem tão bravamente nesse dia resolvera propor festa na lezíria.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 53.

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SAI do banho, entra na sala. Estira-se na poltrona, feito em água. Descomposto. Saracoteio de ancas diligentes, as secretárias. Bando de risinhos, loiros, morenos. Jogos turcos: enxugos de careca. Nuvens de pó de talco nos sovacos. Vaporosas fragâncias espargidas no corpo cevado.

É sempre este o ritual quando o senhor presidente, por dever de ofício, tem de apanhar banhos de multidão. E chega com as pituitárias em estado de choque. Impregnado dos odores de campanha. A feder a povo.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 104.

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A primeira palavra

ENFIM entre paredes, sem saber por onde começar. Tina de meter a mãos no fogo. Domar o alfabeto, as letras. Tocar-lhes, aprender-lhes o corpo, saber-lhes o tipo, itálico, redondo, caixa alta, baixa. Compor. Passar o rolo, a tinta, na macha de chumbo. Amordaçar os ruídos. Acabrunhar o cheiro. Imprimir o jornal, papel tão fino quanto a mortalha do cigarro que agora lhe pende dos lábios. Ousa compor a palavra. Mede-lhe as vogais, mira-lhe as consoantes. A medo isola um L, o maior que encontra na tituleira, e com a mesma desmesura de corpo junta um I, sempre em caixa alta, um B, a soletrar com os dedos busca um E, logo um R, um D, A, outro D e… E, inflamada com um ponto de exclamação, a palavra. A sua primeira palavra clandestina.

Publicado originalmente in A minha laranjeira e outros contos, Edições Gatopardo, abril 2013, página 7.

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Jacarezinho falador

– MAMÃ!
– Sim.
– Os pássaros…
– Sim.
– Os pássaros têm duas asas?
– Sim.
– Porquê?!
– Para voar.
– Mamã!
– Sim.
– E os homens têm duas pernas?
– Para andar.
– Mamã, e as raposas têm duas orelhas…
– Para ouvir.
– E os gatos têm dois olhos para quê, mamã?
– Para ver.
– Mamã, mamã, então por que é que nós não temos duas bocas?!
– Para não andarmos a dialogar sozinhos.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 24.

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O homem que interpreta os campos

QUEM olhar os campos em atento devagar, não lhes adivinha futuro líquido, feitos vinho, aguardente, jeropiga, espumante, rum. E, dentro da paisagem embriagada, quem como ele capaz de prever, no sonâmbulo podador, a figura turva que derreia agora a cabeça na mesa do tasco, pagando enfim o tributo à terra.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 60.

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RASGA os tt em abraços nas costas dos ii: as pintas, como gotas em repuxo, a ressurtir. Para baixo, perfeccionista, encaracola as pernas dos gg. Para cima, meticuloso, estica a cabeça dos ll. Engravida os OO. E os vv, boca para o ar, abre-os em súplica de passarinho.

Letra a letra, tece as palavras com esmero de iluminista. E a prosa flui muito devagar, paciência de mulher de Atenas a cerzir o tempo.

Anos na escrita a fio, tem já dois gavetões plenos de obra, preservada com bolinhas de naftalina: quatro colchas de casal, texto lavrado em ponto de pé de flor, com orlas bordadas a bb entre pompons de pp.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 30.

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História de estimação

PRIMEIRO trincou a língua, cortou. Mais tarde mordeu o rabo, cortou. Dois acidentes, duas fatalidades. Ganhou-lhe o gosto e com dramática persistência, em escala crescente, foi-se trincando, trinchando. Em pouco tempo, ficou reduzida a duas maxilas de dentes anavalhados.

Impulsionado pelo instinto devorador, fixou-se nos patos, nos peixes-vermelhos… A fim de evitar contratempos, o dono comprou-lhe açaimo, trela. E, rédea curta, pode enfim passear pelo lago, em segurança, a dentadura danada, a sua piranha de estimação.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 22.

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O homem que sopra música pelos dentes

CHEGADO ao dentista, de pronto denuncia o orifício entre os incisivos cariados. Mas impõe que no afã do tratamento, no denodo da oclusão lhe não barrem o ar. O ar, soprado pelo furinho. Ar que se faz música, quando ele beija a harmónica.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 16.

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EM noites de tempestade, gosto de abrir a janela, sair. Quem me surpreender depois a vadiar num céu de relâmpagos, talvez julgue ver um anjo migrante, tresmalhado do bando. Um anjo a voar. Enquanto, a saltar entre lianas de luz, eu, simplesmente Tarzan.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 67.

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Garnisé

ERA uma vez um garnisé que virava tudo de pernas para o ar. Desesperados, os pais arranjaram-lhe namorada, uma jovem sereia muito senhora do seu nariz.

Breve, o garnisé lhe deu a volta, casaram. Na cerimónia, ele vistoso, ela fantástica: metade mulher da cintura para baixo, metade peixe da cintura para cima.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 20.

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O homem que alimenta a esperança

POR recomendação das vizinhas, desde miúdo a mãe lhe untou a débil cabeleira com petróleo: Faz muito bem à seborreia, Aurorinha! E reforça o pêlo! Anos de viscosa terapia transformaram-lhe a cabeça num tubérculo hirsuto.

Hora de crise, ao saber do caso as petrolíferas prospectaram e a extracção foi iniciada em clima de euforia.

A festa não tardou a exaurir. O país tem agora muita fé num projecto de energia eólica, no alto da careca.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 43.

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JÁ não conseguia falar. O marido chegava a casa, ladrava! Nem um raciocínio articulado, uma serena troca de palavras, uma meiguice. Só ladrava, o cão!

Entre paredes, ainda era com o bobi que ela conversava. Era a sua companhia, o seu amigo, o confidente.

Um dia, o cão do marido sempre a ladrar, farta, juntou os trapos. E foi viver para a casota.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 9.

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Fauna fantástica

EU miúdo, era o Senhor Ribeiro, o Penacho, que me cortava o cabelo: uma hora de tortura capilar, muitas de horror capital. As histórias: bruxas, tranglomanglos, lobisomens, estafermos, faunos, almas-penadas, bichas-cadelas em poções e feitiços. E as encruzilhadas?! O tardo! O arrepio, tic! tic! tesoura a arrancar-me o cabelo, pêlo a pêlo.

– Nunca tal vi. Parecem pregos! – judiciava o barbeiro, enquanto discorria, douto, por diabelhos em Vilar, luzeiros em Macinhata, encostos na vila.

Chegava a casa, cabelos em pé. A minha mãe olhava displicente, atribuía o assarapanto ao corte à escovinha. A razão era outra, sabia eu, sabia ele, o Penacho, o Senhor Ribeiro, o velho Mestre que me apresentou toda a fauna fantástica a operar então na minha terra.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 18.

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O homem que vem à rua respirar ar puro

PASSA a vida no escritório, preso aos processos a cheiras a mofo, entontecido pelos comentários dos colegas sobre as últimas da telenovela, nauseado pela exaltação do perfume do chefe. Para escapar à asfixia, valem-lhe as surtidas até à rua a ferver de trânsito, pé na soleira, mão suspensa no fumo de um cigarro.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 45.

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TODAS as noites, contava as estrelas. Praticamente nunca fizera outra coisa na vida. E, uma a uma, longos anos naquilo, chegou a uma procissão de algarismos. Um número a morder o infinito.

Num serão aziago, entre a Cassiopeia e Orion, de repente, o lapso! Sereno, o velho astrónomo voltou ao princípio.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 37.

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Delfim

O PASSARITO chilreante agachou um dia a cabeça entre as asas, apaixonado pela tristeza. Os amigos tentaram arrancá-lo à morrinhice. Fosquinhas, cócegas, brincadeiras: bolinha de papel amarrotado, Delfim.

Aquela prostração adveio-lhe após sobrevoo à Terra do Desencanto, chãos de amargura regados com lágrimas, sem gente, sem árvores, sem bichos. Desde aí, entre os galhos da oliveira velha, deixou-se mirrar.

Uma manhã, Delfim acordou animado. Foi à Terra do Desencanto, esgravatou o chão negro, e do bico soltou uma estrela: pequena, diminuta semente de Sol.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 15.

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O homem que era um pai babado

OS miúdos aprendem a escrever cada vez mais cedo, facto positivo, mas que não deve ser tomado como valor absoluto, a ponto dos encarregados de educação baixarem o nível de exigência linguística, tolerarem grosseiros atropelos ortográficos. Ainda há pouco, o Aniceto, já quase com um ano de idade, assinava com dois ss, ante o gáudio do paizinho!

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 63.

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O QUE o miúdo tinha pela frente não era pêra doce. Arregaçou as mangas, pôs a mão na massa. Mas a mãe viu e foi o fim da macacada:

– Toninho, então é assim que se come a aletria!?

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 59.

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Besugo

NA ilha, avó e netos, apreensivos. Quase meio-dia e a Besugo sem voltar. Ontem veio cedo, miados doridos, pata arrastada.

Fora e dentro, em corrilório, os miúdos. Entre a fome e a esperança. De repente, um na janela:

– Vem aí!
– Fala baixo – a avó, baixinho.

Martírio a tingir linha rubra no empedrado, a gata arrasta-se em ensanguentada marcha-atrás, carne em posta grande a sair-lhe pela boca. Impressiona.

Sem alarido, galgam à rua, resgatam ao animal a agonia. E entram na cozinha de roldão, Besugo ao colo, festejada. Portas cerradas, para trancar aromas, a avó passa por água o confisco. Breve, na sertã a crepitar, bifanas.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 9.

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O homem que perdeu o Pai Natal

AINDA no berço, conheci-o. Lembrança difusa, odor a canela. Depois, miúdo, recordo-o num hálito quente e nítido de bacalhau e batatas, pés de tronchuda, a boca da panela, sempre a maior, baforadas densas a enevoarem a cozinha. Iluminada pela toalha de linho da avó, mesa farta: bilharacos, rabanadas, uvas passas. E nozes, pinhões, apesar do preço.

O tempo da família grande.

Todos apareciam. E ele não faltava. Chegava tarde, ceia alta, por volta da hora explosiva do espumante, rolhas no tecto em ricochetes cegos. No auge do alvoroço, pam! Todo o mundo, pam!, transido, se calava. As pancadas, pam!, as três pancadas com a acha na grelha do fogão a lenha. O sinal.

Recuperada a respiração, algazarra, saltávamos aos brinquedos. No frenesim do que eram meu, teu, por ali andaria ele na cozinha, embora com rigor e em verdade nunca nos tenhamos cruzado, o tenha visto.

Anos mais tarde, a mudança para a cidade, um sem-regresso ao aconchego da velha casa. E a revelação cruel de todo o embuste.

Longo luto.

Um dia, homem feito, às compras num centro comercial, de repente, em carne e osso, à minha frente: o patriarca da infância. As mesmas barbas brancas!

Não mais larguei o meu herói. Deslumbrada sombra, segui-o para todo o lado, horas a fio. Até que às tantas ele se aproximou e, baixinho, barbas coladas ao ouvido, se aproximou e disse para eu o esperar mais adiante, ao dobrar da esquina. Que ia só ali, e vinha já.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 8.

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O homem que diz mãe, minha senhora mãe

CADA dia mais encolhida ele a vê, mais minúscula no contexto ele a acha: os degraus da escadaria a alçarem-se verticais, o pulinho do quarto para os outros aposentos a fazer-se jornada penosa, a cama a abrir-se em precipício no tapete, a distância da boca ao garfo a ganhar proporções de miserável humilhação.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 56.

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COMEÇOU por escrever um calhamaço: mil e duzentas páginas. O editor sugeriu redução. Cortou metade. Mesmo assim, nova proposta de síntese. Novo corte. E outro, e outro. Por fim, a obra lá saiu, magra e alva, densidade absoluta. Em capa dura, o título: Uma página em branco

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 32.

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Ambidextro

SIGNIFICA destreza à direita e à esquerda: homem hábil com as duas mãos; touro que marra exacto com qualquer dos cornos; muar rigoroso a escoucinhar com ambas as patas; jacaré que abocanha com igual desembaraço para os dois lados.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 8.

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Mirim

O DIA, a data, a gata preta: pensou em azar. Pensou no azar de, justo naquela sexta-feira treze, lhe morrer a gata, a sua velha gata preta. Recusou sepultar a dor no lixo da cidade: numa caixa de cartão embalou o corpo pequenino, amortalhado numa tira de lençol, partiu com o discreto esquife debaixo do braço. Chegado à terra-mãe, horas de viagem, buscou a enxada, gume enferrujado pelo pousio, cavou. Fundo, o mais fundo do que alcançou no solo empedernido, cavou. Cavou como quem busca um aconchego, umas mãos abertas, um ninho, um berço essencial para cingir a velha companheira, neste chão indócil de palavras.

Publicado originalmente in A minha laranjeira e outros contos, Edições Gatopardo, abril 2013, página 4.

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O homem que caçou a deusa

Levou a arma à cara. Cano virado par o céu, um tiro. A criatura, cega ao rumo que levava, caiu.
-Busca, Flecha! – ordenou o caçador.
A perdigueira, a abanar o rabo, fez-se ao monte. Breve regresso: na boca, Diana, morna ainda.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 30.

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Abelharuco

PÁSSARO que come abelhas. Se comesse melgas, seria um melgaruco; moscas, um moscaruco; borboletas, um borboletaruco; cigarras, um cigarruco; joaninhas, um joanhinharuco; homens, um morticínio. De pássaros.

Publicado originalmente in Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, Edições Gatopardo, outubro 2004, página 7.

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A minha laranjeira

TENHO uma laranjeira no quintal, plantada por minhas mãos um dia, pequenina, a bem dizer criança, que no Inverno se cobre de frutos para mim. Por mais que a admoeste, lhe recomende temperança, todos os anos o esgaçar costumeiro dos braços crivados de frutos, no chão molhado. Comovido, nas noites frias, cinjo-me a ela e, tronco com tronco, juntos carregamos o martírio. Até ser manhã.

Publicado originalmente in A minha laranjeira e outros contos, Edições Gatopardo, abril 2013, página 2.

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O homem que vê à distância

QUANDO os jornais publicaram Saturno visto pelos olhos da sonda Cassini, o homem recortou a fotografia com religioso trato, colou-a na parede, em destaque. Ao alcance da mão, anéis iluminados, Saturno; longe, a Terra, ponto adivinhado em tons esvaídos.

Agora, quando coisa adversa sobrevém, num instante se põe em casa. E fecha-se no quarto, a matutar na estampa.

Publicado originalmente in O homem que, edição de autor, Porto, junho de 2008, página 28.

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Perda irreparável

PERDEU o cabelo, comprou peruca. Perdeu os dentes, adquiriu placa. Perdeu mulher, casou de novo. Perdeu os filhos, fez outros tantos. Perdeu os sentidos, reanimou. Perdeu o comboio, foi despedido.

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 99.

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OBSERVADOR, o empregado do snack mede o cliente: nariz abatatado, olhos de ovo estrelado, bochechas de bife mal passado.
– E para beber?

Publicado originalmente in Histórias de coisa nenhuma, Campo das Letras, novembro de 2000, página 44.

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A noite das facas longas

ABRE o bilhete, dobrado em quatro, que ele lhe deixou sobre a mesa do café. Lê, dissimuladamente:

Espero-a esta noite. A porta da rua fica encostada. Seja cuidadosa, que ninguém a veja entrar. Eu próprio tratarei da ceia. Uma receita da minha falecida avó: carne esfaqueada em tiras, chouriço de sangue golpeado, uma cabeça de alho esmagada, batata a murro. E prometo-lhe sangria, à luz de velas.

Volta a dobrar o bilhete em quatro. Com a ponta e mola corta o papel aos bocadinhos, corta o papel aos bocadinhos, corta o papel aos bocadinhos, e decide arriscar.

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O mergulho

OLHA a íngreme sucessão de degraus, devagar faz a ascensão penosa. Atingida a prancha principal, prepara o salto: ergue os braços, flecte ligeiramente as pernas, logo num impulso vigoroso voa para diante, para cima. Desenha uma curva exacta e, veloz, o corpo em prumo irrepreensível, silva para o poço mais fundo – detesta falhar projectos – e, em rigoroso ângulo recto, fere a imaculada superfície azul. Ainda a cheirar a tinta fresca.

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Circunscrever

O HOMEM pançudo assomou ao patamar abobadado do edifício e disparou para o céu. Um pássaro caiu, redondo, no exacto centro da rotunda. Intrigado com a geometria do facto, o homem inspeccionou a boca da arma. E a concluiria da mesma natureza do orifício entretanto entre olhos, se acaso houvesse sobrevivido à acidental  coincidência desta prosa circunscrita.

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A cidade fraterna

O VENEZIANO Marco Polo muito falou a Kublai Kan, imperador mongol, da cidade fraterna que dura uma noite. Esse relato o conheceu Italo Calvino, sem que entretanto a tenha arrolado entre as urbes invisíveis que a seu tempo deu a saber, por de todas ser a mais fantástica, tanto que se tornaria inverosímil.

Todos os anos, noite certa, quando o velho jacarandá é uma grande flor azul, nasce a cidade. Os circunspectos cidadãos com fazenda encerram seus graves ofícios e, acompanhados das virtuosas famílias, vêm para a rua folgar com os pobres, os chulos, as prostitutas, carteiristas, polícias, frades, ateus, gente de todas as crenças que ali arriba de longínquos tempos e remotos lugares.

Entre fumaça, balões, pirilampos, carrosséis, foguetes, música, comem, bebem. Incensam-se com ervas, expiam excessos em altos fogaréus saltando e, honra a um orago sem cabeça, dançam. Dançam e martelam-se. E martelam-se. Martelam-se uns aos outros, na cabeça.

Fraternal desatino.

Súbito, mariposa contra a vidraça da manhã, a cidade falece.

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Textos de Augusto Baptista

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