O TERMO meio do monte deve ter sido retirado por alguém que se deslocou aqui, onde estou. A carrinha entra folgadamente e sem custo, mas a saída avizinha-se difícil pois não há local para poder inverter a marcha. Um pouco como a vida, entramos de frente, saímos às arrecuas. A casa parece ter nascido ali, entre pinheiros e eucaliptos jovens, rodeada de caruma, bolotas calcadas pelo Verão e montículos de cinza onde, adivinho, se devem ter queimado restos da limpeza do terreno. Os cães surgem ao caminho, não ladram aos pneus da carrinha, fazem uma espécie de guarda ou inspecção minuciosa a quem lá vem.

Não há campainha, ouço uma saudação vinda da esquina e uma senhora surge, vestida de negro, encurvada talvez pelo tempo, talvez pela idade e embora possamos pensar que se trata da mesma coisa, tempo e idade, são lados bem distintos de uma moeda que teimamos em poupar. Há quem chegue à idade sem tempo e quem não tenha tempo para ter idade. Coisas estranhas. Como esta casa, térrea, quadrangularmente regular, onde me chama à atenção o poço e a nora de cocos. Seriam ornamento ou ainda funcionariam?

Cumprimenta-nos com uma simpatia própria de quem é senhora de si e manda-nos entrar. Diz-nos que já arrumou as coisas do quarto para caber a cômoda, pede desculpa por não ter nada para oferecer de beber, era o falecido que tratava das aguardentes que recebia quando andava a cantonar caminhos, agora de bebida só água e o café com borra que descansa na cafeteira metálica espessa.

Pousamos a cômoda, está algo escuro dentro de casa, não ajudará certamente o dia farrusco em que chove fuligem e choram as árvores. Sorrio ao passar por uma série de calendários de anos distintos, cada um com uma imagem diferente de Nossa Senhora de Fátima. De resto, a casa é sombra e alvura de paredes, mesmo na cozinha com a mesa de tampo zincado e uma só cadeira forrada com um avental. A lareira convidava a ficar sentado no mocho, um torpe resto de pinheiro, mas por educação esperei à porta.

Compra-se às prestações aqui. Algo certamente em desuso, penso. O senhor com quem vim tira dois cartões do tamanho de um vulgar cartão-de-visita, nos quadrados anota valores que deduzo serem as mensalidades ou prestações. Na primeira quadrícula do cartão coloca uma cruz, a primeira prestação é oferta, disse-lhe. Esta baixa o olhar envergonhada, não quer aceitar, mas perante a insistência agradece. Vai à arca congeladora e tira um frango, quer retribuir o gesto. Esboçando uma negação ele pega no frango congelado e ao mesmo tempo que faz o gesto de sair para guardar na carrinha o cadáver do galináceo, pede-lhe para ir ver se a medida da cômoda era mesmo aquela. Ela sai da cozinha, ele pisca-me o olho e rapidamente coloca o frango de volta na arca congeladora e ainda retira do bolso do casaco uma embalagem de comprimidos que coloca por entre outras caixas iguais.

A senhora surge, era mesmo aquilo, diz-nos, logo depois do terço já se irá entreter a meter a roupa nas gavetas. Saímos de casa, os cães parecem anuir o gesto de bondade do vendedor com uma escolta até à carrinha. A senhora acompanha-nos e antes de fechar o portão de madeira, diz que se conseguir vender a lenha dos dois pinheiros que caíram por causa da doença ainda encomenda um banco pequenino de pinho para si mesma, como prenda de Natal.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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